Camões

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía*.

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"


É carnaval, folia, festa – para alguns – folga, família, churrasco – para outros; quem sabe até momento de se retirar um pouco; viajar ou simplesmente ficar em casa. Há os que amam, há os que odeiam, há os indiferentes e também os que decidem festejar na hora em que o bloco passar. O fato é que fiquei muito em dúvida do que postar, ou sobre quem e, aí, pensando nisso tudo e dialogando com as pessoas nesses últimos dias, deparei-me com o soneto** “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, do poeta português Camões. O próprio verso dispensa muito comentário, afinal, mudam-se os tempos, as gerações, os lugares, pessoas vêm e vão... Mudam-se as vontades, as opiniões, os conceitos... Esta é uma das belezas da vida: mudar, poder escolher, tão ter um olhar radical e imutável sobre o outro ou sobre si mesmo. E que nós, contrariamente, possamos converter em doce canto o choro.


Acaso ou não, hoje compartilho com vocês um pouco da poesia de Luís Vaz de Camões.


Sobre Camões muito pouco se sabe. Não há muitas informações precisas sobre a data de seu nascimento, como foi sua vida, quem era sua família... Há estudiosos que dizem ele ter nascido em 1524. Frequentou a Universidade de Coimbra e também exerceu funções militares, vindo perder o olho direito. Levava uma vida boêmia.


Foi preso uma época por ter agredido um oficial do rei, viveu exilado em colônia portuguesa. Regressou a Portugal anos mais tarde, pobre e adoentado, e consegue ainda publicar “Os Lusíadas”, poema épico que conta as façanhas das grandes navegações portuguesas.

Ora, sem dúvida alguma, Camões foi um grande poeta, um dos maiores poetas portugueses. Dentre suas várias obras, exímio sonetista, escreveu belíssimos poemas e, como característica da própria arte, tão atuais.

Sua arte é situada na época do Renascimento e seus textos seguem os padrões clássicos – rimas, métrica, forma – o que só conferiu ainda mais beleza aos seus textos tão profundos.


“Ao desconcerto do Mundo”

Os bons vi sempre passar
no Mundo grandes tormentos;
e pera mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
assim que, só pera mim,
anda o Mundo concertado.

***********

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto:
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
Num' hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um' hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

**********

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor? 


As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;



* soía: (Pouco utilizado) Ter como tradição; usar por costume. (Etm. do latim: solēre)

** soneto: forma fixa de poema que segue o padrão dois quartetos e dois tercetos (totalizando 14 versos). Quanto à métrica (número de sílabas poéticas), são mais usados os versos decassílabos (10), ou os alexandrinos (12).




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