O processo criativo
Vejam só como são as coisas: depois de ter escrito tantas
crônicas, justamente quando preciso criar uma para estrear no blog, simplesmente
não tenho a menor ideia sobre o que escrever. Afinal, já escrevi sobre tantos
temas: amor, amizade, solidão, política, música etc., etc., etc. Como ser
original? Como não ser repetitiva? Não, não sei sobre o que falar.
Talvez fosse melhor falar sobre mim mesma. Ah, não! Não há nada
sobre mim que as pessoas que me leem já não saibam. Se bem que, vamos combinar,
nem é tanta gente assim. Há pouco tempo me aventurei por esse mundo das
palavras e tenho de reconhecer, ainda sou uma ilustre desconhecida. Quisera eu
ter o cacife de Martha Medeiros, uma das maiores cronistas deste país. Bem, mas
talvez vocês gostassem de me conhecer melhor, não é? Acho que também não
é o caso. Já que não posso garantir que seja exatamente isso que esperam de
mim, estou meio perdida. Está difícil. Vamos fazer o seguinte: vamos falar
sobre o processo criativo.
Não faz muito tempo, assisti a um programa na tevê em que o
convidado especial era o Lenine. Que delícia! Lenine, para mim, é um dos caras
mais incríveis da nossa música. Sua capacidade inventiva é algo extraordinário!
E invejável, diga-se de passagem. Adoro! Nem vou citar as inúmeras letras
compostas por ele que o colocam, sem sombra de dúvidas, como um dos principais
compositores da MPB. Neste especial, nosso nobre compositor dizia que, muitas
vezes, a inspiração é traiçoeira: “Você quer compor uma bela canção, se prepara
para isso e nada acontece.” – ele disse.
Lenine contou nesta entrevista que, certa tarde, ele e Paulino
Moska (outro gênio da música popular brasileira), reuniram-se em sua casa para
tentar desenvolver um novo projeto. Depois de horas e horas tentando, não
escreveram uma nota sequer. Desistiram.
Lenine foi levar o amigo em casa. Era uma tarde cinzenta, céu
pesado, prenúncio de tempestade. Ao parar o carro num farol, bateu à janela uma
menina de rua. Lenine abaixou o vidro e a criança comentou: “Tá
relampiaaaando!”. A entonação deu o primeiro toque. Os dois se entreolharam,
mas nada disseram. Logo a seguir, a menina olhou para o banco traseiro do carro
onde havia uma cadeirinha de bebê vazia – a de Bruno, filho de Lenine que, na
época, era bem pequeno. A menina perguntou: “Cadê neném?”. E aí que, depois de
horas e horas em busca da inspiração, Lenine e Moska tiveram, simultaneamente,
o “sinal”: do nada – ou do tudo daquele episódio inusitado -, surgiu uma bela
canção que, além de tudo ainda nos remete à reflexões sobre a sociedade em que
vivemos. Somente duas cabeças geniais poderiam criar uma letra dessas.
Sensibilidade, capacidade de observação e talento, muito talento, acho que é
isso que eles têm. E juntos então, quem segura? Olhem isto:
Tá relampiando/ Cadê neném?/
Tá vendendo drops/No sinal pra alguém (refrão)
Todo dia é dia, toda hora é hora
Neném não demora pra se levantar/ Mãe lavando roupa
Pai já foi embora/E o caçula chora
Pra se acostumar/Com a vida lá fora/Do barraco...
Hay que endurecer/Um coração tão fraco
Pra vencer o medo/Do trovão
Sua vida aponta/A contramão...
Tudo é tão normal/Todo tal e qual/Neném não tem hora
Pra ir se deitar/Mãe passando roupa/Do pai de agora
De um outro caçula/Que ainda vai chegar
É mais uma boca dentro do barraco/Mais um quilo de farinha
Do mesmo saco/Para alimentar
Um novo João Ninguém/A cidade cresce junto/Com neném...
Tá relampiando cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém...”
Realmente é uma linda música. Ouçam. E reflitam.
Vejam o que é o
processo criativo: é espontâneo, natural, inusitado, incompreensível,
indefinível e, extraordinariamente, incrível! Às vezes, por mais que se queira
criar, não surge uma grande ideia. Porém, de repente, do nada, ela surge, ela
vem, ela desce pronta e te toma, inteiramente. Orgasmo! Prazer absoluto!
E eu, que nada tinha a dizer no início do texto, acabei
escrevendo – e descrevendo -, como acontece, ou não, o grande barato que é
criar, seja uma crônica ou uma música.
Se me saí bem? Aí já é uma outra história.
Perfeita. Criar é dominar algo que está expresso além de tempo e espaços definidos. Dá dignidade a essa expressão é um ato de êxtase para o criador e de coragem quando entregamos aos olhos de "outrem" o fruto de nossa criação.
ResponderExcluirParabéns pela crônica!
Eu amo esta Jô!!!!
ResponderExcluirParabéns pelo texto maravilhoso.