Saudades salgadas



Ainda havia resquícios dos momentos em sua cabeça. As imagens dançavam em seus pensamentos. Ela se lembrava... As conversas temperadas com bebidas quentes, os risos. Foram todos momentos bons: nada ali não valera a pena. As conversas eram sempre encadeadas uma após o fio da meada da outra, a naturalidade com que as palavras saíam das bocas, os risos, ah... os risos. Vibrantes.
Os olhos se tocando com frequência, o volume das covas das bochechas, o avançado das horas, a vontade de mais, mais, mais enquanto tudo eram apenas sobras de minutos que a rotina consumia, que a inveja consumia, que o ciúme consumia. Queriam o quê? Nada além de se deixarem levar por aqueles minutos temperados com palavras. Com pausas de olhares. Com intervalos de silêncios a se denunciarem. Estavam apaixonadas, mas nem se davam conta disso porque viviam o sentimento sem perguntar. Eram o quê? Almas irmãs? Essa porra toda então de vidas, vidas além da vida, antes da vida, depois da vida? Que importava! Amavam-se com a mesma intensidade e leveza das ondas.
Quando se encontravam podiam retirar o peso da fachada, a tinta sobre a tinta que se desgastava à medida que a beleza do que eram realmente ameaçava aparecer. Retiravam de suas costas o fardo feminino-feminista com que lhes rotulavam e eram apenas gente. E transformavam em longas horas aquelas sobras de minutos e se amavam, e se contemplavam, e se apoiavam, e se aconselhavam; como dois grandes velhos amigos das datas remotas que se encontram.
Ah... mas as lembranças daqueles tempos antes de tudo acabar apertavam o peito, faziam o coração borbulhar em chamas. Não lembrariam, então, quando já das últimas vezes foram ambas ao encontro do mar? Aquelas almas tão irmãs, tão amantes, tão paradoxalmente gêmeas galoparam juntas sobre as águas do mar. Emoção descontida igual não poderia haver, porque se pudesse estabelecer um padrão de perfeição seria aquele: tudo o que mais amava estava ali, numa sobra de momento. O aroma doce da maresia que lhe entranhava os poros deixando sua pele branca, as gotinhas de água que umedeciam sua blusa e a fazia colar no corpo, misturando sal e suor. O movimento do corpo do cavalo entre suas penas; entre suas pernas outro corpo humano responsável por abrigar aquela alma macia.
O cheiro suado da nuca. O cheiro salgado do mar. O cheiro de sal que saía do suor do cavalo. E quem as olhasse assim juntas a galoparem no mar nem poderia supor a traição que praticavam aos preconceitos humanos. Cada uma daquelas criaturas sabia, dentro de si, o pulsar do tesão que explodia a cada batida da onda contra seus corpos; cada uma trazia em si o segredo trancado de um sentimento real, puro, verdadeiro e condenado.
Contudo, naqueles momentos roubados, elas galoparam, elas se abraçaram enquanto suas peles suaves grudavam ao corpo veloz que as levavam a um passeio às nuvens. Sorrisos e risos porque nada ali era programado: apenas um encontro de almas que se amaram desde o primeiro momento. Quando se dariam conta? Quando a poesia se transformaria em palavrão? Era mais fácil atravessarem aquele mar inteiro a nado que as pessoas não lhe apontarem dedos e beiços sem compreenderem o que passava, sem lhes condenarem a um inferno metafórico em que as palavras e olhares ardem mais que o sal nos próprios olhos.
Tudo o que lhes restaria seriam saudades da perfeição. Saudades que iriam arder por muito e muito tempo e que iriam temperar as noites insones, quando a fachada poder-se-ia, então, ser deixada num canto e junto ao travesseiro abandonar o choro. Aqueles corpos não eram ideais para andarem de mãos dadas; não eram ideais para procriarem; não eram ideais para o padrão de amor des-romantizado dos tempos modernos. Mas aquelas almas... ah, elas formavam um par perfeito.
E ela se lembrava disso, enquanto as lágrimas podiam escorrer livres a galoparem pela sua face, temperando de sal sua saudade mais infinita...

Elayne Amorim



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