Desafio 642 - Tema 63 (A refeição perfeita)




O dia foi longo. Houve momentos em que demorou a passar. Nem deu tempo de tomar café da manhã, uma das refeições mais perfeitas...
Bolo de cenoura daquele armazém. Com cappuccino. Hum...
Não houve comida de sal hoje, mas houve quebra de expectativas, fila de banco, fila de ônibus, espera, subida de escadas, descida, pastas, mesa, cafezinho! Cheiro de café: parece cheiro de quentura das mãos envolvendo o rosto da gente.
Mas aí tudo passa. O dia longo e frio transforma-se numa linda tarde de outono com céu azul e sol bem amarelo. Até foi possível retirar o agasalho.
Em casa... Cheiro de casa... Janela aberta para o anoitecer estrelado, brisa fria excitando os pelos da pele descoberta. Música baixa. Pequenos afazeres domésticos deixados de lado. Banho quente. Ele chega.
Um beijo estala nos lábios cansados de ambos. Pequenos diálogos. Música baixa.
Com a casa toda fechada, ao abrigo da cozinha, apesar da louça do dia anterior, tudo pode ser cancelado, adiado; tudo pode esperar. Tábua e faca, barulho opaco de garrafa de vinho sendo aberta. As cores dos queijos montam mosaicos irregulares no recipiente. As azeitonas contrastam com os amarelos. Algumas fatias vermelhas incendeiam o ambiente de sal e temperos picantes.
Pouca coisa, muitas cores. O transparente do azeite se mescla ao fino cheiro de orégano salpicado e as substâncias todas, de todas as formas em seus cheiros se misturam ao púrpuro odor meio seco que aguarda pacientemente sobre a pequena mesa de centro.
As mãos de ambos carregam pela casa os pequenos vasilhames e talheres como a espalhar um incenso de sabores até chegarem à sala.
A música baixa.
A mesa de centro farta com tantas atenções, duas taças com seu vinho.
Olhos que se olham cúmplices de seus sentimentos, da demonstração de seus carinhos mútuos, do descomprometimento com a forma pesada com que se anda a moldar vida rotineira.
Hoje é dia de semana. Amanhã acordar cedo.
As taças se tocam de leve, num tilintar de sorrisos. O gole que desce em suas gargantas meio secas, a regar aquelas bocas sedentas, a despertar ainda mais a fome cultivada o dia inteiro.
Pequenos pedaços, cores altivas, sabores de ervas finas ao azeite provocado com calabresa apimentada.
De início eles saboreiam tanto, como se cada célula gustativa fosse despertada para um festival. Depois eles riem. Eles trocam frases e falam de coisas como num livro de contos, falam de sonhos e planos e bobagens que até o cientista mais louco acharia absurdo.
Porque é dia de semana. Porque a fome os afligia. Porque a refeição é como um ritual. Prepará-la, temperá-la, depositar ali um pouco de alma e paciência. Misturar sabores, mesclar as cores. Sentar-se. Saborear e principalmente estar. Porque quantos grandes momentos passamos durante uma refeição perfeita! Não se trata de banquete. Trata-se de parar um pouco e viver, e dividir, e olhar, e ouvir, e sentir... Porque a refeição perfeita satisfaz o corpo e acalenta a alma.
Qual foi a sua última refeição perfeita?

Elayne Amorim

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