Seguindo rastros de poesia numa segunda-feira cinzenta...



Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Fernando Pessoa
 Arte Poética II


A poesia não me pede propriamente uma especialização, pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal, mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.
É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

(...) O verso é denso, tenso como um arco, exatamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exatamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.

Sophia de Mello Breyner Andresen


No dia brancamente nublado entristeço quase a medo
E ponho-me a meditar nos problemas que finjo...

Se o homem fosse, como deveria ser,
Não um animal doente, mas o mais perfeito dos animais,
Animal directo e não indirecto,
Devia ser outra a sua forma de encontrar um sentido às coisas,
Outra e verdadeira.
(...)
O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as coisas - eis o erro e a dúvida.
O que existe transcende para baixo o que julgamos que existe.
A Realidade é apenas real e não pensada.
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos.
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Assim como falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade.
Mas, como a essência do pensamento não é ser dita, mas ser pensada,
Assim é a essência da realidade o existir, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos,
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.

O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.

Estas verdades não são perfeitas porque são ditas,
E antes de ditas, pensadas:
Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias
Na negação oposta de afirmarem qualquer coisa.
A única afirmação é ser.
E ser o oposto é o que não queria de mim...

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

 

Às vezes me sinto só e confusa. Como a dançar num ritmo sem música. Às vezes o mundo me assusta. Escondo-me. Como se possível fosse desaparecer num mundo criado por mim. Tudo às vezes parece tão pouco. Nada é tão demais. Meu maior momento de dor é evitar que ela saia e floresça. Minha maior confusão é negar o que em mim arde. Minha maior solidão é esquecer que posso estar só e feliz. Eu sei a verdade, mas é que às vezes esqueço. Ou nego. Por que olhar para tão longe se o universo está tão perto? Às vezes eu tenho medo porque isso é maior que eu; embora isso seja eu. A poesia não é mecânica: pode até ser quântica, mas jamais mecanicista, meritocrática ou produtiva. A poesia é antes e depois: agora, numa segunda-feira de inverno cinzenta ela me acenou e sorriu pra mim; me chamou de medrosa e outros nomes que revelarei em outro texto. A poesia está em tudo (em nada): pegue um fio, jamais encontrará a meada; mas, sim, haverá muitos rastros de beleza incontida e paixões incontroláveis... Ah, essa poesia! Tenho a sensação de que falei e falei e não disse nada. Mas que se dane! Poesia não é pra ser conceituada: antes, uma coisa de dentro da gente que explode em fagulhas de universos...

Elayne Amorim

Imagens: Google

 

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