Sentimentos Literários: Ensaio sobre a cegueira - José Saramago

Sinopse:

Um motorista parado no sinal se descobre subitamente cego. É o primeiro caso de uma "treva branca" que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos se perceberão reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas.
O Ensaio sobre a cegueira é a fantasia de um autor que nos faz lembrar "a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam". José Saramago nos dá, aqui, uma imagem aterradora e comovente de tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos maiores visionários modernos, como Franz Kafka e Elias Canetti.Cada leitor viverá uma experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu: "uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos".





Preciso confessar-lhe, caro leitor: ler "Ensaio sobre a cegueira" não foi uma das experiência mais felizes que tive na vida. Não mesmo. Mas foi sem dúvida, uma das que mais me fortaleceu e fez-me descobrir, em mim, "compartimentos secretos" que eu nem sabia que existiam. Nunca fui pessoa de sentimentos tranquilos, de sensações mornas. Reconheço, sou das intensidades, dos mergulhos em noites escuras e águas profundas. Das aventuras no desconhecido, dos medos vivenciados e das inexatidões experimentadas. As coisas todas que moldam-nos não são feitas apenas de doçuras, babados e tons pastéis. A vida às vezes é cinza. Tão cinza, que pode cegar-nos, sem que sequer percebamos.

A história daquelas pessoas que, uma a uma, às dezenas, às centenas, vão-se mergulhando “num mar de leite”, todo aquele caos, aquela degradação e desumanidade mexem verdadeiramente com o ego, com as nossas convicções enraizadas, com os sentimentos de bondade, os conceitos de relações humanas, os valores e os desejos. Há muito o que se pensar. Muito o que ponderar. O que ficou, para mim, principalmente, foram os vários “e se?” com os quais me defrontei quando fechei o livro. A noite já ia alta e percebi então que por muito tempo ainda ficaria acordada. Ao longo dos dias, iria lembrar-me de coisas que eu não gostaria de lembrar, mas que era absolutamente necessário.

O livro veio estapear-me a face com a mão bem espalmada - tapa esse que irá arder por um bom tempo; veio fazer-me sentir um gosto metálico de sangue na boca; desprender uns odores nada agradáveis bem debaixo do meu nariz; gritar de maneira ensurdecedora as piores verdades durante a noite inteira e fazer-me ver tudo o que muitas vezes eu me recusava a enxergar. 

Foi assim que eu me senti. Meio virada do avesso. Desconstruída diante de moralismos caducos, de certezas inabaláveis, de convicções ultrapassadas. São muitos os sentimentos envolvidos. Muitas as perguntas, cujas respostas só virão com o tempo. Muitas as sensações que irão ficar para sempre.

Mas também me senti verdadeiramente mais forte, mais protegida, porque inconscientemente sabia que desenvolvera, a partir dali, uma casca bem mais grossa, um escudo natural bem mais duro do que aquele que eu já trazia.

Por que aquelas pessoas foram tratadas de tal forma? Como deveria sentir-se aquela mulher, que carregava tamanha responsabilidade – a de ter olhos quando todos já os perderam? E se nos importássemos mais com o outro antes de agir, teríamos mais consciência de valores como a honestidade, o respeito, a humanidade? Por que algumas pessoas que enfrentam situações degradantes conseguem ainda, sabe-se lá por qual razão, humilhar aqueles que estão em simetria de enfrentamentos? E se, por um acaso, tudo aquilo acontecesse? Quantos dos que amamos e conhecemos de fato sobreviveriam? Nós sobreviveríamos?

Vislumbrava eu, nesse momento, caro leitor, um quadro inquietante, mas ao mesmo tempo misterioso. Um quadro que exibia-me imagens angustiantes, que me atordoavam e me faziam pensar constantemente em uma forma de ser mais humana, mais digna, mais empática, e que simultaneamente, derramava-me bálsamos de beleza e bondade. Beleza que não se pode ver com os olhos da face. Bondade que se faz sentir, mesmo quando tudo em volta compõe um cenário de desolação e morte.


Assim foi, querido leitor, para mim - pessoa não dos sentimentos pastosos, das sensações mornas, mas das intensidades, dos mergulhos em noites escuras, em águas profundas, das aventuras no desconhecido, dos medos e das inexatidões - a experiência com a história escrita por este senhor avesso aos pontos finais e adorador das vírgulas. Uns muitos momentos de sem fôlego, ora pelas longas passagens, ora pelas longas angústias. Um presente, é bem verdade, mas um presente que irá morder-me as canelas e arranhar-me as pernas algumas e algumas vezes, incomodar-me com a realidade, fazer-me reclamar. 

Um presente que trará sempre à minha lembrança a utilidade dos meus sentidos, e de como é pesado o fardo de manter-se sempre atento e "enxergando", sempre em aprendizado, quando muitos já não se importam em "ver" nada. 

Um presente que conhece o sem nome dessa "coisa que tenho dentro” e que é, exata e perfeitamente, tudo o que sou e represento para mim e para aqueles que me cercam, independente do tipo de cegueira que tenhamos ou não.  


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