Onde está a poesia?

ONDE ESTÁ A POESIA?

Procuro-a num olhar, numa esquina, ao raiar do dia até o pôr do sol. Ando a procurar pela poesia, parece ela ter fugido de mim, ou, em mais um capricho seu, brincando de esconde-esconde só para me lembrar que dentro do apesar de tudo cabe ainda um espírito infantil. Ela insiste comigo, tento ser clássica, mas ela me quer subversiva; tento fingir que nem penso nela, mas aí vem ela, de repente, e se exibe pra mim dizendo que não adianta eu fugir, pois em tudo ela está. Basta eu treinar mais um pouco meus olhos e descansá-los no acontecer dos fatos e no deslizar das palavras que constroem, destroem, reconstroem o mundo.



Subversiva

A poesia
Quando chega
Não respeita nada.

Nem pai nem mãe.

Quando ela chega
De qualquer de seus abismos

Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha

Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.


E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.


E promete incendiar o país.

Ferreira Gullar


MATÉRIA DE POESIA

 


Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia


 O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia


 Terreno de 10x20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia


 Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia 


 As coisas que não levam a nada
têm grande importância 


 Cada coisa ordinária é um elemento de estima
 Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral


 O que se encontra em ninho de joão-ferreira :
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia


 As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia


 Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia


 As coisas que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos -
tem muita importância para os pulmões
da poesia


 Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia


 Os loucos de água e estandarte
servem demais 


O traste é ótimo
O pobre – diabo é colosso

 Tudo que explique
     o alicate cremoso
      e o lodo das estrelas
serve demais da conta


 Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada


 Tudo que explique
     a lagartixa de esteira
     e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia


 O que é bom para o lixo é bom para poesia
 Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
     tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
      sabe a destroços


 As coisas jogadas fora
têm grande importância
- como um homem jogado fora 


Manoel de Barros



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

II Encontro de Fãs Harry Potter (De Cara Nova)

Se eu não fosse poeta

Feminismo, por Ayn Rand